terça-feira, 4 de maio de 2010
ANALFABETO
No país A, o cidadão B precisa que o orgão C lhe disponibilize um número D para que o orgão E lhe disponibilize um número. Mas o orgão E precisa que o número D seja fornecido pelo orgão C. O cidadão B se F.
domingo, 11 de abril de 2010
O CINEMA E A CORAGEM DE PENSAR
Ontem vi uma comédia alemã sobre Hitler chamada ''Mein Fuhrer''. Pois é, isso mesmo. Finalmente os alemães conseguiram fazer troça e tentar entender por si próprios aquela maluquice que ninguém conseguiu entender direito até agora, mas que pra eles é um terror bem mais complicado de se encarar que para qualquer outro observador além dos judeus e dos estados invadidos pelo nazismo. São acusados de cúmplices daquela coisa, afinal.
Em certa cena, o Hitler em frangalhos procura seu professor judeu de dicção e atuação nos aposentos deste e de sua família. Deita entre eles e dorme. Nem nota a tentativa de assassinato da esposa do ator judeu. O ator judeu ainda argumenta que Hitler é ''apenas uma vítima de um pai violento e de condições adversas.'' Não que tenha se afeiçoado a Hitler, apenas considera que tenha entendido algo a respeito do comportamento do chefao. Ainda quer matá-lo. Só não conseguiu aceitar o pragmatismo da esposa, que não quis desperdiçar aquela oportunidade única. Estava fascinado pelo algoz-mor. Era covarde ou humano demais para matá-lo assim, em seu complicadamente adquirido leito matrimonial e na presença dos filhos (vejam o filme para entender essas circunstâncias).
Não sei por que razão esse filme não foi motivo de polêmica e discussão, apenas desconfio. A questão, pelo que entendi, não é a justificativa psicológica e moral dos atos de Hitler e seus seguidores diretos - coisas que o filme ridiculariza de maneira elegantemente engraçada - mas atentar para o fato de que tudo o que aconteceu por aqueles dias foram obra de humanos, como nós. Falíveis e influenciáveis.
O apoio do povo alemão, no fim das contas, não foi muito diferente da maneira como a maioria dos norte-americanos encararam e encaram a tal da guerra ao terror hoje em curso. Amavam o seu país e acreditavam em seus líderes. Com a desvantagem de nao contarem com fontes independentes de informação.
Mas o que eu achei mais bacana nesse filme foi o fato de que, ao humanizar Hitler - que faz xixi na cama e chora ao lembrar das surras do pai - não humanizam o grande monstro político que foi. Explicitaram sim a ''monstrualização'' do homem e do seu meio, a sociedade. Hitler foi só a cara feia e visível de uma maneira equivocada da massa se mover e manifestar-se que, dotada de voz, cara e opinião equivocadas - produtos de si mesma - é capaz que tudo.
Muitos reclamam do fato de Tarantino ter matado Hitler em seu estupendo ''Bastardos Inglórios''. O assassinato de Hitler que Tarantino bolou é magnífico. E que se fodam os puristas históricos, a Arte e a Ficção estão aí justamente pra desopilar e tentar compreender a humanidade e o animal que a faz acontecer.
Mas, ao botar Hitler de quatro, chorando, lamentando sobre as surras do pai, como um incapaz sexual, um alienado manipulável pelo seu ministério corrupto, um sujeito enfim entregue à demência que o motivou a fazer tudo aquilo que fez, apenas aponta o dedo pra todos nós.
Hitler não era nem nunca foi o super-homem. Muito menos aquele do Nietzsche. Estamos longe disso, ainda. Era só alguém que TODO O MUNDO deixou convencer a Pátria que, grosso modo, nem era a dele, de que estava certo.
Enquanto existir ignorância em massa e a manipulação dessa ignorância em massa - chamamos isso de ''política'' - teremos outros louquinhos como ele. Mais moderados, mais ternos. Uns realmente bons e preocupados. Outros se coçando pra usar o que Hitler usou, e todos os outros caras.
Não se deve esquecer, a massa ainda se move assim. Hitler foi eleito. Mussolini também. Assim como Bush Jr. e o Coronel Chavez. O Ahmadinejad e o Shimon Peres. E o Lula e o Obama, que são os caras. Todos eleitos. Democraticamente. Não falaremos dos óbvios ditadores que persistem. Mas o princípio é o mesmo. A massa.
Ah. No Brasil o filme foi lançado com o título de ''Minha Quase Verdadeira História''. Produção alemã de 2007 com direção de Dany Levy. Notaram isso? Alemanha, Levy, filme, nazismo, comédia. Isso já vale o filme, né?
Em certa cena, o Hitler em frangalhos procura seu professor judeu de dicção e atuação nos aposentos deste e de sua família. Deita entre eles e dorme. Nem nota a tentativa de assassinato da esposa do ator judeu. O ator judeu ainda argumenta que Hitler é ''apenas uma vítima de um pai violento e de condições adversas.'' Não que tenha se afeiçoado a Hitler, apenas considera que tenha entendido algo a respeito do comportamento do chefao. Ainda quer matá-lo. Só não conseguiu aceitar o pragmatismo da esposa, que não quis desperdiçar aquela oportunidade única. Estava fascinado pelo algoz-mor. Era covarde ou humano demais para matá-lo assim, em seu complicadamente adquirido leito matrimonial e na presença dos filhos (vejam o filme para entender essas circunstâncias).
Não sei por que razão esse filme não foi motivo de polêmica e discussão, apenas desconfio. A questão, pelo que entendi, não é a justificativa psicológica e moral dos atos de Hitler e seus seguidores diretos - coisas que o filme ridiculariza de maneira elegantemente engraçada - mas atentar para o fato de que tudo o que aconteceu por aqueles dias foram obra de humanos, como nós. Falíveis e influenciáveis.
O apoio do povo alemão, no fim das contas, não foi muito diferente da maneira como a maioria dos norte-americanos encararam e encaram a tal da guerra ao terror hoje em curso. Amavam o seu país e acreditavam em seus líderes. Com a desvantagem de nao contarem com fontes independentes de informação.
Mas o que eu achei mais bacana nesse filme foi o fato de que, ao humanizar Hitler - que faz xixi na cama e chora ao lembrar das surras do pai - não humanizam o grande monstro político que foi. Explicitaram sim a ''monstrualização'' do homem e do seu meio, a sociedade. Hitler foi só a cara feia e visível de uma maneira equivocada da massa se mover e manifestar-se que, dotada de voz, cara e opinião equivocadas - produtos de si mesma - é capaz que tudo.
Muitos reclamam do fato de Tarantino ter matado Hitler em seu estupendo ''Bastardos Inglórios''. O assassinato de Hitler que Tarantino bolou é magnífico. E que se fodam os puristas históricos, a Arte e a Ficção estão aí justamente pra desopilar e tentar compreender a humanidade e o animal que a faz acontecer.
Mas, ao botar Hitler de quatro, chorando, lamentando sobre as surras do pai, como um incapaz sexual, um alienado manipulável pelo seu ministério corrupto, um sujeito enfim entregue à demência que o motivou a fazer tudo aquilo que fez, apenas aponta o dedo pra todos nós.
Hitler não era nem nunca foi o super-homem. Muito menos aquele do Nietzsche. Estamos longe disso, ainda. Era só alguém que TODO O MUNDO deixou convencer a Pátria que, grosso modo, nem era a dele, de que estava certo.
Enquanto existir ignorância em massa e a manipulação dessa ignorância em massa - chamamos isso de ''política'' - teremos outros louquinhos como ele. Mais moderados, mais ternos. Uns realmente bons e preocupados. Outros se coçando pra usar o que Hitler usou, e todos os outros caras.
Não se deve esquecer, a massa ainda se move assim. Hitler foi eleito. Mussolini também. Assim como Bush Jr. e o Coronel Chavez. O Ahmadinejad e o Shimon Peres. E o Lula e o Obama, que são os caras. Todos eleitos. Democraticamente. Não falaremos dos óbvios ditadores que persistem. Mas o princípio é o mesmo. A massa.
Ah. No Brasil o filme foi lançado com o título de ''Minha Quase Verdadeira História''. Produção alemã de 2007 com direção de Dany Levy. Notaram isso? Alemanha, Levy, filme, nazismo, comédia. Isso já vale o filme, né?
quarta-feira, 7 de abril de 2010
O FIM DO MUNDO ÓLHOLHÓ
VONNEGUT ClearMind Freeware recupera e publica:
A ponte Hercílio Luz já era. Surpresa nenhuma. Sustentava-se por seu próprio peso. Tenho certeza de que caiu no primeiro tremor, antes da segunda do que andam chamando de “convulsões” das águas das baías. É minha opinião, qualquer engenheiro que discorde que se foda e fique à vontade pra discordar. Ela caiu. Não resolveram o problema em dois séculos e meio desde a primeira discussão séria a respeito da manutenção desse monumento. Nem monumento era, era obra de engenharia. Uma das últimas da sua categoria. Virou monumento depois de tornada inútil. De qualquer maneira, já era, já foi. Temos todas aquelas belas fotos pra lembrar. Esta é uma discussão inútil, considerando o fato de que a Ilha na qual a ponte se apoiava não existe mais. Nem o continente, como era até a pouco tempo. Agora o Litoral catarinense fica a centenas de quilômetros continente adentro. Quer dizer, o que se considerava litoral catarinense. Hoje, o Paraguai e a Argentina disputam aquela faixa de litoral. E os uruguaios ainda argumentam um direito religioso, baseado em crenças pascoalinas deles e no princípio do direito brasileiro que versa sobre o uso capião. Uma lambança. O Governo Federal anda ocupado demais com a preservação da cidade de São Paulo, depois que as duas primeiras capitais da pátria foram engolidas sem cerimônia pelas águas em um intervalo de meros quatorze anos. A elevação de Brasília em cem metros, noventa anos atrás, ainda perturba. Mas nada perturba Brasília. Flutuará, no colapso final do continente. Pobre gente que lá ficar, esperando por raminho.
A ponte Hercílio Luz já era. Surpresa nenhuma. Sustentava-se por seu próprio peso. Tenho certeza de que caiu no primeiro tremor, antes da segunda do que andam chamando de “convulsões” das águas das baías. É minha opinião, qualquer engenheiro que discorde que se foda e fique à vontade pra discordar. Ela caiu. Não resolveram o problema em dois séculos e meio desde a primeira discussão séria a respeito da manutenção desse monumento. Nem monumento era, era obra de engenharia. Uma das últimas da sua categoria. Virou monumento depois de tornada inútil. De qualquer maneira, já era, já foi. Temos todas aquelas belas fotos pra lembrar. Esta é uma discussão inútil, considerando o fato de que a Ilha na qual a ponte se apoiava não existe mais. Nem o continente, como era até a pouco tempo. Agora o Litoral catarinense fica a centenas de quilômetros continente adentro. Quer dizer, o que se considerava litoral catarinense. Hoje, o Paraguai e a Argentina disputam aquela faixa de litoral. E os uruguaios ainda argumentam um direito religioso, baseado em crenças pascoalinas deles e no princípio do direito brasileiro que versa sobre o uso capião. Uma lambança. O Governo Federal anda ocupado demais com a preservação da cidade de São Paulo, depois que as duas primeiras capitais da pátria foram engolidas sem cerimônia pelas águas em um intervalo de meros quatorze anos. A elevação de Brasília em cem metros, noventa anos atrás, ainda perturba. Mas nada perturba Brasília. Flutuará, no colapso final do continente. Pobre gente que lá ficar, esperando por raminho.
domingo, 4 de abril de 2010
O AMOR, SEGUNDO 2112/1976/YYZ-81
VONNEGUT ClearMind Freeware recupera e publica:
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Fragmento dos registros deixados pelo interno 2112/1976/YYZ-81:
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Francamente, não há nada mais detestável que amar francamente. Nenhum amor franco é correspondido de verdade, salvo o de mãe. Como bem notou alguém que amo francamente. Fora isso, amarás francamente ou serás amado francamente, mas raramente tais circunstâncias coincidem. Alguns dirão que conhecem amores francos. Que vivem amores francos. Essas situações existem mesmo. Honestos, crentes, cruéis, iludidos. O amor não poupa ninguém e cobrará seu preço, sem escolher lado. Castiga e castigará a todos, cedo ou tarde. Quero fazer notar que falo do tal amor, não das atitudes estúpidas que se cometem em nome de algo que, quando acontecem, já não mais existe. Falo do amor e do amar, mesmo. Amemo-nos falsamente uns aos outros para que possamos nos detestar carinhosamente. Mas se descobre, se revive, aquele bom amor por alguém que parecia merecer tal amor. Bobagem, pode ser que se viva uma epopéia amorosa, não é? Mas, por conta disso, tal epopéia transforma-se em remendos degradantes e conversas detestáveis. Ou coisa pior. Essa foi uma especulação tola, claro. Amores francos não chegam a esse ponto, quando quase coincidentes. Não me falem em baleias, camada de ozônio, de que cigarro faz mal, ou qualquer outra coisa detestável. Não há nada mais detestável do que amar francamente. As mulheres que magoei por amarem-me francamente e as que me magoaram por tê-las amado francamente sabem – ou deveriam saber – disso. Considero isso detestável, principalmente depois de dar-me conta de ter finalmente amado absurdamente e francamente e descoberto a bobagem que tinha feito. De novo. Ah... Não faça essa cara irônica, você aí. Recolha esse sorriso cético. Sabes bem do que falo, leitor hipócrita. Se não sabes, vá rindo. Tua hora há de chegar. Preste atenção.
- - - - -
É possível que outros textos do interno 2112/1976/YYZ-81 sejam apresentados, após restauração.
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Fragmento dos registros deixados pelo interno 2112/1976/YYZ-81:
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Francamente, não há nada mais detestável que amar francamente. Nenhum amor franco é correspondido de verdade, salvo o de mãe. Como bem notou alguém que amo francamente. Fora isso, amarás francamente ou serás amado francamente, mas raramente tais circunstâncias coincidem. Alguns dirão que conhecem amores francos. Que vivem amores francos. Essas situações existem mesmo. Honestos, crentes, cruéis, iludidos. O amor não poupa ninguém e cobrará seu preço, sem escolher lado. Castiga e castigará a todos, cedo ou tarde. Quero fazer notar que falo do tal amor, não das atitudes estúpidas que se cometem em nome de algo que, quando acontecem, já não mais existe. Falo do amor e do amar, mesmo. Amemo-nos falsamente uns aos outros para que possamos nos detestar carinhosamente. Mas se descobre, se revive, aquele bom amor por alguém que parecia merecer tal amor. Bobagem, pode ser que se viva uma epopéia amorosa, não é? Mas, por conta disso, tal epopéia transforma-se em remendos degradantes e conversas detestáveis. Ou coisa pior. Essa foi uma especulação tola, claro. Amores francos não chegam a esse ponto, quando quase coincidentes. Não me falem em baleias, camada de ozônio, de que cigarro faz mal, ou qualquer outra coisa detestável. Não há nada mais detestável do que amar francamente. As mulheres que magoei por amarem-me francamente e as que me magoaram por tê-las amado francamente sabem – ou deveriam saber – disso. Considero isso detestável, principalmente depois de dar-me conta de ter finalmente amado absurdamente e francamente e descoberto a bobagem que tinha feito. De novo. Ah... Não faça essa cara irônica, você aí. Recolha esse sorriso cético. Sabes bem do que falo, leitor hipócrita. Se não sabes, vá rindo. Tua hora há de chegar. Preste atenção.
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É possível que outros textos do interno 2112/1976/YYZ-81 sejam apresentados, após restauração.
domingo, 28 de março de 2010
O SORRISO E A PITANGA
No comecinho da tarde não havia mais chuva, o tempo abriu e decidi passear. Parei na praça, com o livro que nunca leio na rua embaixo do braço. É um livro com cara de praça, de meio da tarde de sábado tranquila e serena. Provavelmente acabarei a leitura sob meu teto antes que eu leia qualquer coisa dele na rua. Pois sentei num bom banco sombreado e mirei o livro. Então um amigo parou e chorou pitangas. Pitangas por pitangas, argumentei que as minhas também eram amargas. Contrariado mas obrigado a concordar, se foi. Abriu seu comércio que ficava logo ali, na fronteira norte da praça. Uma criança de uns quatro, cinco anos chutou uma bolinha na minha direção, e a chutei de volta. Ele riu e me chutou novamente a bola. Chutei-a um pouco mais à esquerda, pra vê-lo caminhar um pouco mais atrás dela. Então sua jovem e gostosa mãe me sorriu burocraticamente e o recolheu, e recolheu também a bola do molequinho. Sobre os ombros da progenitora, me sorriu e abanou um sincero e inocente tchau, que retribuí com sinceros e encantados tchau e sorriso. Que bom menino, e que gostosa mamãe. Quando novamente abri o livro pelo marcador, aquele meu amigo passou ao largo, e acenei com sincera cordialidade e honesta simpatia. Ele fez que não viu, depois encarou. E então cuspiu arrogantemente e partiu. Lamentei que a pitanga que antes chorava fosse amarga demais para seu paladar, a ponto de fazê-lo cuspir daquela maneira. Fechei o livro que mal abri e rumei pra casa, onde cuspiria minhas pitangas amargas e terminaria de ler o livro leve que deveria ser lido na praça. Fui-me sorrindo, lembrando do sorriso honesto daquele molequinho boleiro cuja mãe era muito gostosa.
quinta-feira, 25 de março de 2010
UMA VEZ MATEI UM CARA
A melhor maneira de confessar seus ditos pecados e aliviar o que consideras culpa e dispersar qualquer coisa que suplicia naturalmente tua cabeça seja lá com que nomenclatura é escrevendo. Por exemplo. ''Matei um cara''. ''Amo uma garota''. ''Detesto beterraba''. De fato matei um cara, amo uma garota e detesto beterraba. Confesso. Amo muito uma garota, ela é ruiva e linda. Não suporto beterraba, tomei litros de suco disso quando quebrei um braço. Matei um cara sem querer, ele mereceu, no fim das contas. De qualquer maneira, é tudo literatura barata, caso a situação se complique. Podem te acusar de ser, no máximo, um mau escritor. E com isso pode-se conviver. Ahh. Me sinto aliviado.
DEPOIS DO OUTRO DIA
Choveu o dia todo, e a noite toda. Vi o dia nascer, e ele nasceu sem chuva. Nasceu vermelho, branco, laranja e com o azul se insinuando. Me lembrei de uma outra alvorada que vi e que também nasceu assim, vermelho, branco, laranja e com o azul se insinuando. Dias nunca nascem iguais, mas esse nasceu desaforadamente com os mesmos matizes. Daquela vez, foi a coisa mais linda que contemplei, e me senti muito, muito bem, feliz até. Até, não. Realmente feliz. Hoje, o vermelho, branco, laranja e o azul insinuante me fizeram lembrar que jamais serão como daquela vez e que antes e depois deles só existe a escuridão da noite ou o cinza das tempestades. Ou a monotonia do azul do dia claro. Aprenderei com as cores do firmamento. Caso contrário, espero que o firmamento me contemple com um radiante e estrondoso raio saído da fúria das nuvens cinzas.
O RELATÓRIO TRITON
''VEJA SÓ, AQUELE ALI PRESTA!''
Com essas palavras iniciou-se a ocupação do terceiro planeta do sistema solar. Incursões regulares para estudo e coleta de espécies locais foram a vanguarda da ação, que, do ponto de vista militar, técnico e econômico, pouco ou nada representaram para a expansão iniciada em tempos imemoriais e ainda hoje em curso.
''MUITO BARULHO POR NADA''
De fato, as missões científicas foram bem sucedidas. Dentre as várias formas de vida baseadas em carbono coletadas naquele planeta, verificou-se que uma espécie do que hoje chamamos de mamíferos (termos e medidas no rodapé) dominou o planeta e sobre ele exerceu força, escorada na liguagem rudimentar e na descoberta e desenvolvimento de ferramentas, e em pouco tempo. Nada que já não tenha sido visto anteriormente em outros planetas.
"VAMOS LÁ VER"
Decidiu-se pela observação mais atenta do tal planeta enquanto a frota se deslocava naquela direção. Como a frota teria várias paradas e, por conta disso, demoraria ainda milhares de anos até atingir aquele quadrante, um grupo pensador conseguiu autorização e financiamento para observar os curiosos animais do terceiro planeta do chamado sistema solar a partir do satélite Triton, do já então reconhecidamente inabitado planeta Netuno.
"OBSERVAÇÃO"
Assim que se estabeleceram em Triton, o grupo passou a estudar e monitorar os planetas e sistemas vizinhos, com atenção especial ao terceiro planeta e os seus aparentemente bons animais nativos. Essa base tornou-se notória e bem quista na Capital e pela Frota, pelo seu baixo custo operacional e pela relevância das informações que transmitiam. E seguiam observando os animais dominantes daquele planetinha. Concordavam com os antigos pesquisadores. Era um planeta bastante pobre e pequeno, e os animais que o habitavam extremamente simples. Esse foi o relatório que enviaram, apesar de nutrir certa simpatia por aqueles animaizinhos. Haviam descoberto finalmente uma maneira de dominar uma fonte de energia, e agora a usavam em seu benefício. Com o fogo, aqueciam sua matéria frágil e amaciavam o que era de seu consumo. Até que bastante espertas, essas criaturinhas.
"DISTRAÇÃO''
Como as operações do Instituto eram baratas e eficientes, a Capital achou por bem enviá-los em missão exploratória a um sistema solar não muito longe dali. Se foram, pois, no cumprimento do dever, e deixaram seus bons bichinhos. Sabiam que se sairiam bem. Foi assim com espécies bem mais primitivas.
''GUERRA''
Os pesquisadores de Triton rumaram para sua pesquisa sem saber que, numa galáxia não muito distante, a Frota colonizadora envolvia-se em uma guerra civil com a qual nada tinha a ver. Isso atrasou bastante o avanço da Frota.
''MAS QUE BAGUNÇA!''
A missão do Instituto Triton também não foi bem. Não cabe aqui uma explicação detalhada dos fatos daquela expedição científica. O que se sabe é que poucos membros retornaram à Triton, de moral baixa e pensando no que escrever em seus relatórios. Foi quando verificaram a situação das instalações e aparelhos e constataram o fato estarrecedor.
''QUEM DIRIA''
Não havia dúvidas. Olhavam diretamente para o planeta, cuja aparência denunciava sua situação. Aliás, o caos de escombros artificiais que circundava o planeta era mais contundente que qualquer especulação. Ficaram fora apenas alguns milhares de anos. Quem diria que aquele animalzinho que brincava com fogo faria algo assim?
''É FATO''
Descobriram por que raios não receberam as informações de que tamanha lambança estivesse ocorrendo, ou porque recebiam praticamente as mesmas informações.O lugar no qual estiveram respondia de maneira diferente ao tempo e ao espaço. Mas enfim, o fato é que os animaizinhos conseguiram destruir em poucos milhares de anos um planetinha que, se não tinha muita importância estratégica, era bem bonitinho e cheio de criaturinhas simpáticas, como se achou que aqueles dominadores do fogo fossem.
"'É OFICIAL''
O Instituto Triton enviou enfim a notícia de que aquele planeta, apesar de severamente agredido, era recuperável e brevemente útil. A Frota vinha firme em direção à estrela que hoje chamamos sol, e já não se lembrava muito bem da sua participação na guerra.
''DESCOBERTA''
Por conta dos eventos ocorridos na viagem anterior dos pesquisadores, todos os aparelhos do Instituto - até ali aparentemente funcionais - começaram a receber uma miríade de sinais e informações. Os equipamentos já os tinha recebido, na verdade. Só passou a processá-los enlouquecidamente. Depois de pôr em ordem toda a parafernália, começaram a analisar os dados e, entre uns estupefatos e outros visivelmente chocados, constataram a realidade do absurdo que acontecera naquele planetinha outrora azul.
''COMO ASSIM?''
Pelas transmissões tardias e pelas análises de campo, constataram algo que jamais especularam ser possível. Aqueles simpáticos mamíferos (Not. do Trad.: ver rodapé) que brincavam com fogo foram capazes de, em poucos milhares de anos, tornar estéril um belo planetinha azul que levou bilhões de anos para tornar-se útero da maior coleção de formas de vida baseadas em carbono jamais vista em qualquer outro canto observável do universo. Que grande merda fizeram os mamíferos falantes dominadores de fogo.
"ADUBO E PRONTO''
Depois de comunicar aos de direito a situação operacional do planetinha que deveriam vigiar - sua real missão, grosso modo - atinaram para o fato de que a órbita do planetinha estava congestionada de sucata resultante de lançamentos extra orbitais primitivos. Durante os preparativos para a expedição à lua terrestre, lembraram que a base das milionarias primeiras pesquisas era aquele mesmo satélite em que se encontravam. Todo tipo de material - biológico, habitacional, tecnológico - foi levado para ali, naquele mesmo satélide em que se encontravam. Mas, enfim. Isso foi a muito tempo, e Triton era uma lua gigantesca. Foram para onde era rápido e fácil de se chegar. Foram para a Lua, Terra, Sistema Solar. Logo ali, portanto.
''LOGO ALI''
As deduções estavam corretas e, antes mesmo de chegarem à lua do terceiro planeta, encontraram um objeto artificial de tamanho médio que continha trezentos e doze corpos do que sabiam deduziam tratar-se de corpos humanos. Após a confirmação dos exames, seguiram até a chamada lua do terceiro planeta. Novamente, as deduções se confirmaram. Os que brincavam com fogo conseguiram estragar sua única chance de continuar brincando com fogo. Foram até ali e estragaram tudo.
''ESPÉCIMES''
Por mais improvável que pareça, na viagem de retorno daquela lua a equipe encontrou outro daqueles objetos artificiais terrestres. Parecia estar intacto. Era bem maior e continha os corpos de 2112 indivíduos. A análise do artefato revelou a existência de outras oito cápsulas íntegras como aquela, e que ela acompanhava outras 1954 naves, que não eram mais funcionais.
''RESGATE''
Com esforço, alguns espécimes dessa perigosa raça foram resgatados. Somam hoje alguns poucos milhòes, mantidos em coleções particulares e em exposições permanentes da Frota. Pouco se parecem com os exemplares resgatados pela histórica missão do Instituto Triton.
A POLÊMICA:''
A celeuma causada pelo recém descoberto documento (e cuja divulgação não é autorizada) do Instituto Triton reside nas afirmações que faz em relação ao auto destrutivo animal nativo daquele planeta e que hoje conhecemos apenas pela clonagem da espécie. O tal documento afirma:
"O RELATÓRIO:''
''Este espécime foi capaz de se comunicar e operar mecanicamente seu ambiente. Este espécime não soube se comunicar e operar mecanicamente seu ambiente quando da sofisticação de ambos os métodos. Este espécime perdeu a capacidade de se comunicar e destruiu seu ambiente pela incapacidade de operar mecanicamente suas descobertas. Este espécime impossibilitou a continuação de sua própria espécie ao não operar a própria mecanicidade, eliminando o própria habitat e o habitat de toda e qualquer forma de vida pluricelular baseada em carbono habitante e dependente daquele planeta.'' O documento continua com a defesa da reintrodução da espécie em seu planeta de origem, desde que devidamente acompanhado durante esse processo.
''TERRA, LUGAR COMPLICADO''
Após a destruição total do planeta causada por seus próprios ocupantes, alguns milênios se passaram. Nossos esforços científicos conseguiram enfim deixá-lo bastante próximo do que foi alguns milhões de anos de seu colapso parasitário. Muitas formas de vida coletadas lá ao longo das milhares de visitas que fizemos foram já reintroduzidas - como os simpáticos golfinhos, as vacas, criaturas voadoras e marítimas e todo tipo de vida animal e vegetal. Existe um projeto de revitalização de antigas áreas degradadas, e o chamado planeta Terra parece ser o local escolhido pra tal iniciativa.
''E AGORA?''
Parece um erro reintroduzir um animal tão pernicioso naquele ambiente planetário. Eles próprios parecem ser, hoje, inapropriados para repovoar tal planeta, considerando que quase não assemelham-se aos seus ancentrais. Aqueles eram bípedes e possuíam olhos, por exemplo. Fica o debate, mas a decisão provavelmente já está tomada. E que sigam nas jaulas.
(Nota do tradutor: A cronologia, idiomas, medidas, valores e nomenclaturas respeitam a determinação número 1984 do ano de 2112 da Frota para este sistema solar e correspondente quadrante, em homenagem ao único animal que foi capaz de tudo nesta região do universo.)
Com essas palavras iniciou-se a ocupação do terceiro planeta do sistema solar. Incursões regulares para estudo e coleta de espécies locais foram a vanguarda da ação, que, do ponto de vista militar, técnico e econômico, pouco ou nada representaram para a expansão iniciada em tempos imemoriais e ainda hoje em curso.
''MUITO BARULHO POR NADA''
De fato, as missões científicas foram bem sucedidas. Dentre as várias formas de vida baseadas em carbono coletadas naquele planeta, verificou-se que uma espécie do que hoje chamamos de mamíferos (termos e medidas no rodapé) dominou o planeta e sobre ele exerceu força, escorada na liguagem rudimentar e na descoberta e desenvolvimento de ferramentas, e em pouco tempo. Nada que já não tenha sido visto anteriormente em outros planetas.
"VAMOS LÁ VER"
Decidiu-se pela observação mais atenta do tal planeta enquanto a frota se deslocava naquela direção. Como a frota teria várias paradas e, por conta disso, demoraria ainda milhares de anos até atingir aquele quadrante, um grupo pensador conseguiu autorização e financiamento para observar os curiosos animais do terceiro planeta do chamado sistema solar a partir do satélite Triton, do já então reconhecidamente inabitado planeta Netuno.
"OBSERVAÇÃO"
Assim que se estabeleceram em Triton, o grupo passou a estudar e monitorar os planetas e sistemas vizinhos, com atenção especial ao terceiro planeta e os seus aparentemente bons animais nativos. Essa base tornou-se notória e bem quista na Capital e pela Frota, pelo seu baixo custo operacional e pela relevância das informações que transmitiam. E seguiam observando os animais dominantes daquele planetinha. Concordavam com os antigos pesquisadores. Era um planeta bastante pobre e pequeno, e os animais que o habitavam extremamente simples. Esse foi o relatório que enviaram, apesar de nutrir certa simpatia por aqueles animaizinhos. Haviam descoberto finalmente uma maneira de dominar uma fonte de energia, e agora a usavam em seu benefício. Com o fogo, aqueciam sua matéria frágil e amaciavam o que era de seu consumo. Até que bastante espertas, essas criaturinhas.
"DISTRAÇÃO''
Como as operações do Instituto eram baratas e eficientes, a Capital achou por bem enviá-los em missão exploratória a um sistema solar não muito longe dali. Se foram, pois, no cumprimento do dever, e deixaram seus bons bichinhos. Sabiam que se sairiam bem. Foi assim com espécies bem mais primitivas.
''GUERRA''
Os pesquisadores de Triton rumaram para sua pesquisa sem saber que, numa galáxia não muito distante, a Frota colonizadora envolvia-se em uma guerra civil com a qual nada tinha a ver. Isso atrasou bastante o avanço da Frota.
''MAS QUE BAGUNÇA!''
A missão do Instituto Triton também não foi bem. Não cabe aqui uma explicação detalhada dos fatos daquela expedição científica. O que se sabe é que poucos membros retornaram à Triton, de moral baixa e pensando no que escrever em seus relatórios. Foi quando verificaram a situação das instalações e aparelhos e constataram o fato estarrecedor.
''QUEM DIRIA''
Não havia dúvidas. Olhavam diretamente para o planeta, cuja aparência denunciava sua situação. Aliás, o caos de escombros artificiais que circundava o planeta era mais contundente que qualquer especulação. Ficaram fora apenas alguns milhares de anos. Quem diria que aquele animalzinho que brincava com fogo faria algo assim?
''É FATO''
Descobriram por que raios não receberam as informações de que tamanha lambança estivesse ocorrendo, ou porque recebiam praticamente as mesmas informações.O lugar no qual estiveram respondia de maneira diferente ao tempo e ao espaço. Mas enfim, o fato é que os animaizinhos conseguiram destruir em poucos milhares de anos um planetinha que, se não tinha muita importância estratégica, era bem bonitinho e cheio de criaturinhas simpáticas, como se achou que aqueles dominadores do fogo fossem.
"'É OFICIAL''
O Instituto Triton enviou enfim a notícia de que aquele planeta, apesar de severamente agredido, era recuperável e brevemente útil. A Frota vinha firme em direção à estrela que hoje chamamos sol, e já não se lembrava muito bem da sua participação na guerra.
''DESCOBERTA''
Por conta dos eventos ocorridos na viagem anterior dos pesquisadores, todos os aparelhos do Instituto - até ali aparentemente funcionais - começaram a receber uma miríade de sinais e informações. Os equipamentos já os tinha recebido, na verdade. Só passou a processá-los enlouquecidamente. Depois de pôr em ordem toda a parafernália, começaram a analisar os dados e, entre uns estupefatos e outros visivelmente chocados, constataram a realidade do absurdo que acontecera naquele planetinha outrora azul.
''COMO ASSIM?''
Pelas transmissões tardias e pelas análises de campo, constataram algo que jamais especularam ser possível. Aqueles simpáticos mamíferos (Not. do Trad.: ver rodapé) que brincavam com fogo foram capazes de, em poucos milhares de anos, tornar estéril um belo planetinha azul que levou bilhões de anos para tornar-se útero da maior coleção de formas de vida baseadas em carbono jamais vista em qualquer outro canto observável do universo. Que grande merda fizeram os mamíferos falantes dominadores de fogo.
"ADUBO E PRONTO''
Depois de comunicar aos de direito a situação operacional do planetinha que deveriam vigiar - sua real missão, grosso modo - atinaram para o fato de que a órbita do planetinha estava congestionada de sucata resultante de lançamentos extra orbitais primitivos. Durante os preparativos para a expedição à lua terrestre, lembraram que a base das milionarias primeiras pesquisas era aquele mesmo satélite em que se encontravam. Todo tipo de material - biológico, habitacional, tecnológico - foi levado para ali, naquele mesmo satélide em que se encontravam. Mas, enfim. Isso foi a muito tempo, e Triton era uma lua gigantesca. Foram para onde era rápido e fácil de se chegar. Foram para a Lua, Terra, Sistema Solar. Logo ali, portanto.
''LOGO ALI''
As deduções estavam corretas e, antes mesmo de chegarem à lua do terceiro planeta, encontraram um objeto artificial de tamanho médio que continha trezentos e doze corpos do que sabiam deduziam tratar-se de corpos humanos. Após a confirmação dos exames, seguiram até a chamada lua do terceiro planeta. Novamente, as deduções se confirmaram. Os que brincavam com fogo conseguiram estragar sua única chance de continuar brincando com fogo. Foram até ali e estragaram tudo.
''ESPÉCIMES''
Por mais improvável que pareça, na viagem de retorno daquela lua a equipe encontrou outro daqueles objetos artificiais terrestres. Parecia estar intacto. Era bem maior e continha os corpos de 2112 indivíduos. A análise do artefato revelou a existência de outras oito cápsulas íntegras como aquela, e que ela acompanhava outras 1954 naves, que não eram mais funcionais.
''RESGATE''
Com esforço, alguns espécimes dessa perigosa raça foram resgatados. Somam hoje alguns poucos milhòes, mantidos em coleções particulares e em exposições permanentes da Frota. Pouco se parecem com os exemplares resgatados pela histórica missão do Instituto Triton.
A POLÊMICA:''
A celeuma causada pelo recém descoberto documento (e cuja divulgação não é autorizada) do Instituto Triton reside nas afirmações que faz em relação ao auto destrutivo animal nativo daquele planeta e que hoje conhecemos apenas pela clonagem da espécie. O tal documento afirma:
"O RELATÓRIO:''
''Este espécime foi capaz de se comunicar e operar mecanicamente seu ambiente. Este espécime não soube se comunicar e operar mecanicamente seu ambiente quando da sofisticação de ambos os métodos. Este espécime perdeu a capacidade de se comunicar e destruiu seu ambiente pela incapacidade de operar mecanicamente suas descobertas. Este espécime impossibilitou a continuação de sua própria espécie ao não operar a própria mecanicidade, eliminando o própria habitat e o habitat de toda e qualquer forma de vida pluricelular baseada em carbono habitante e dependente daquele planeta.'' O documento continua com a defesa da reintrodução da espécie em seu planeta de origem, desde que devidamente acompanhado durante esse processo.
''TERRA, LUGAR COMPLICADO''
Após a destruição total do planeta causada por seus próprios ocupantes, alguns milênios se passaram. Nossos esforços científicos conseguiram enfim deixá-lo bastante próximo do que foi alguns milhões de anos de seu colapso parasitário. Muitas formas de vida coletadas lá ao longo das milhares de visitas que fizemos foram já reintroduzidas - como os simpáticos golfinhos, as vacas, criaturas voadoras e marítimas e todo tipo de vida animal e vegetal. Existe um projeto de revitalização de antigas áreas degradadas, e o chamado planeta Terra parece ser o local escolhido pra tal iniciativa.
''E AGORA?''
Parece um erro reintroduzir um animal tão pernicioso naquele ambiente planetário. Eles próprios parecem ser, hoje, inapropriados para repovoar tal planeta, considerando que quase não assemelham-se aos seus ancentrais. Aqueles eram bípedes e possuíam olhos, por exemplo. Fica o debate, mas a decisão provavelmente já está tomada. E que sigam nas jaulas.
(Nota do tradutor: A cronologia, idiomas, medidas, valores e nomenclaturas respeitam a determinação número 1984 do ano de 2112 da Frota para este sistema solar e correspondente quadrante, em homenagem ao único animal que foi capaz de tudo nesta região do universo.)
segunda-feira, 22 de março de 2010
SÁBADO MEDIEVAL
Ele: "Vou defender a cristandade, não me espere pro jantar!".
Ela: "Com esse chapéu ridículo, os mouros não te respeitarão..."
Ele: ''Vou! Tenho uma espada e um cavalo, oras!''.
Ela: ''De qualquer forma, os mouros já estão aqui e trouxeram a matemática e a filosofia clássica traduzida...''
Ele: ''Tens razão. Esse chapéu é horroroso. Fico.''
Ela: ''Muito bem. Agora guarda essa tralha e vai tratar com a plebe vassala que sitia o castelo. Ah, trazei batatas."
Ele: "Espada, cavalo, lacaios... tudo pra nada... e ela quer batatas... batatas!"
Ela: "Queres que uma bula papal te ordene a busca de batatas? Vai!''
Ele: ''Hmfglgjflgjfyutgdfg..." e saiu, rumo aos portões.
Menestrel: ''A Rainha adorava o banho e nele demorava. Desde que durante o dia, quando admirava os vitrais e o Rei tratava dos assuntos do Reino."
O menestrel não era bobo.
O Bobo viria na quarta.
(Foto: Sarah Westphal, Espanha)
Ela: "Com esse chapéu ridículo, os mouros não te respeitarão..."
Ele: ''Vou! Tenho uma espada e um cavalo, oras!''.
Ela: ''De qualquer forma, os mouros já estão aqui e trouxeram a matemática e a filosofia clássica traduzida...''
Ele: ''Tens razão. Esse chapéu é horroroso. Fico.''
Ela: ''Muito bem. Agora guarda essa tralha e vai tratar com a plebe vassala que sitia o castelo. Ah, trazei batatas."
Ele: "Espada, cavalo, lacaios... tudo pra nada... e ela quer batatas... batatas!"
Ela: "Queres que uma bula papal te ordene a busca de batatas? Vai!''
Ele: ''Hmfglgjflgjfyutgdfg..." e saiu, rumo aos portões.
Menestrel: ''A Rainha adorava o banho e nele demorava. Desde que durante o dia, quando admirava os vitrais e o Rei tratava dos assuntos do Reino."
O menestrel não era bobo.
O Bobo viria na quarta.
(Foto: Sarah Westphal, Espanha)
LEVEZA
Chegou no fundo do poço e não levou nada pra ler? Não se aflija. Caso o fundo do seu poço seja seco, deite e apóie os pés firmemente nas paredes. Olhe para cima. Se for dia, podes brincar de ''luz no fim do túnel''. Não adiantará de muita coisa, mas distrai e ajuda o tempo a passar. Agora, se o fundo do seu poço for alagado, lamacento, fétido e escuro...
sábado, 20 de março de 2010
INEVITÁVEL
Um incoerente e histérico Teletubbie corria alucinadamente e sem rumo.
- De novo! De novo! De novo!
gritou o Teletubbie descontrolado.
- Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!
retrucou sem conter o riso e lamentando a cena o quase sempre sisudo corvo do Poe.
- De novo! De novo! De novo!
gritou o Teletubbie descontrolado.
- Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!
retrucou sem conter o riso e lamentando a cena o quase sempre sisudo corvo do Poe.
sexta-feira, 19 de março de 2010
BREVE ESCLARECIMENTO
Alguns dos textos abaixo foram escritos diretamente na rede social FACEBOOK, de supetão (perdão aos que não conhecem o termo ou que pensaram bobagem...). De forma que alguns deles estão divididos em capítulos, pela limitação que o Facebook impõe em relação ao número de toques. Portanto, alguns parecerão mais bizarros do que realmente são. Ou não. Fui largando tudo como pequenos capítulos, pretendendo não quebrar o clima narrativo. Essa limitação de espaço foi algo bem bacana, aliás. Certos erros - gramaticais, de digitação, de qualquer coisa - são por conta da postagem apressada, mas assumo a maioria deles. Melhor, todos eles. Postei-os todos aqui (e postarei os próximos) por duas razões: resgatá-los do Facebook, que é coisa muito estranha. E aqui eu tenho um certo controle da coisa, posso recuperá-los e, caso alguém com estranha motivação também o queira, poderá encontrar o material. É isso.
UM QUASE ALÍVIO
UM QUASE ALÍVIO - parte 1 -
Não acreditava em deus, mas respondia “bença, mãe” e “bença, pai” toda vez que um de seus progenitores lhe atiravam um “deus te abençoe, meu filho”. Era um acordo hipócrita, mas de boas intenções. Ele sabia – já que muitos anos antes havia declarado aos que da casa quisessem ouvir e em termos bastante explícitos sua descrença em deus – que gostavam de ouvir dele esse pouco de liturgia.
UM QUASE ALÍVIO - parte 2 -
Eles, cientes que eram da realidade, alimentavam a esperança de que a repetição das palavras de alguma maneira o fizesse acreditar em sua crença.
UM QUASE ALÍVIO - parte 3 -
Se perguntava quando e se seus pais finalmente notariam que pedia a benção a eles, boas pessoas que amava e que bem ou mal lhe criaram, e não ao deus das crenças que alimentavam.
UM QUASE ALÍVIO - parte 4 -
Não acreditava em jogos. Mas, passando em frente a uma lotérica de pouca fila e com tempo e trocados no bolso, jogava. Raramente conferia o resultado. No entanto, quando as circunstâncias convenientes se apresentavam, jogava de novo.
UM QUASE ALÍVIO - parte 5 -
Não acreditava no ser humano enquanto animal social. Os hábitos e maneiras lhe pareciam forçados, pouco funcionais. Pior, auto-destrutivos. Anuladores, conflitantes pela própria dinâmica. Aceitava o cotidiano, do qual assimilava certo conforto e com o qual tinha uma relação bastante tranqüila, por fácil.
UM QUASE ALÍVIO - parte 6 -
Porém, descrente que era, especulava a remota vontade de que a possibilidade da existência de alguém como ele fosse real. Alguém que, como ele, possuísse a plena consciência da inexistência e impossibilidade de tudo, e nas quais não se pode acreditar, portanto.
UM QUASE ALÍVIO - parte 7 -
Se encontrasse tal pessoa, confidenciariam. Se identificariam. Comungariam. Acreditariam que o outro sabe que não é possível acreditar em algo. Seriam iguais na crença da impossibilidade de se crer em qualquer coisa além do nada absoluto.
UM QUASE ALÍVIO - parte 8 -
Tal encontro insinuou-se muitas vezes, e sempre foram apenas possibilidades. Como sempre soube, tudo resultou em nada. Foi então que decidiu não crer que tal evento fosse possível.
UM QUASE ALÍVIO - parte 9 -
Nesse dia impossível, encontraria alguém que, como ele, descrê de tudo. E ele acreditaria, descrente que é e sabedor de que não se pode crer em nada. Então se alertaria para a impossibilidade de tal fato.
UM QUASE ALÍVIO - parte 10 -
Mataria, pois, ou daria fim a si mesmo. Não poderia conviver com o fato de acreditar que alguém acredita descrer de tudo, como ele. Alguém estaria mentindo, e sabendo que mentia, acreditaria em si e, nisso, não poderia acreditar.
UM QUASE ALÍVIO - parte 11 -
O celular apitou em seu bolso, tirando-o de todos os devaneios que alimentou desde que sentou ali, no banco sombreado da praça na qual descansava.
UM QUASE ALÍVIO - parte 12 -
Olhou para o aparelho, com a mensagem selecionada. Abriu, leu. Era quase o que pensara que seria.
UM QUASE ALÍVIO - parte 13 -
Esticou-se, e observou a praça. Reparou os pombos que ciscavam por ali, e lembrou que detestava pombos. Viu um mendigo falando sozinho e um policial barrigudo tentando acender um cigarro com fósforos. Achou graça da praça.
UM QUASE ALÍVIO - parte 14 – Final -
Com um isqueiro do qual não lembrava, acendeu o penúltimo cigarro. Triste, lamentou sinceramente ter ainda acreditado e partiu.
Não acreditava em deus, mas respondia “bença, mãe” e “bença, pai” toda vez que um de seus progenitores lhe atiravam um “deus te abençoe, meu filho”. Era um acordo hipócrita, mas de boas intenções. Ele sabia – já que muitos anos antes havia declarado aos que da casa quisessem ouvir e em termos bastante explícitos sua descrença em deus – que gostavam de ouvir dele esse pouco de liturgia.
UM QUASE ALÍVIO - parte 2 -
Eles, cientes que eram da realidade, alimentavam a esperança de que a repetição das palavras de alguma maneira o fizesse acreditar em sua crença.
UM QUASE ALÍVIO - parte 3 -
Se perguntava quando e se seus pais finalmente notariam que pedia a benção a eles, boas pessoas que amava e que bem ou mal lhe criaram, e não ao deus das crenças que alimentavam.
UM QUASE ALÍVIO - parte 4 -
Não acreditava em jogos. Mas, passando em frente a uma lotérica de pouca fila e com tempo e trocados no bolso, jogava. Raramente conferia o resultado. No entanto, quando as circunstâncias convenientes se apresentavam, jogava de novo.
UM QUASE ALÍVIO - parte 5 -
Não acreditava no ser humano enquanto animal social. Os hábitos e maneiras lhe pareciam forçados, pouco funcionais. Pior, auto-destrutivos. Anuladores, conflitantes pela própria dinâmica. Aceitava o cotidiano, do qual assimilava certo conforto e com o qual tinha uma relação bastante tranqüila, por fácil.
UM QUASE ALÍVIO - parte 6 -
Porém, descrente que era, especulava a remota vontade de que a possibilidade da existência de alguém como ele fosse real. Alguém que, como ele, possuísse a plena consciência da inexistência e impossibilidade de tudo, e nas quais não se pode acreditar, portanto.
UM QUASE ALÍVIO - parte 7 -
Se encontrasse tal pessoa, confidenciariam. Se identificariam. Comungariam. Acreditariam que o outro sabe que não é possível acreditar em algo. Seriam iguais na crença da impossibilidade de se crer em qualquer coisa além do nada absoluto.
UM QUASE ALÍVIO - parte 8 -
Tal encontro insinuou-se muitas vezes, e sempre foram apenas possibilidades. Como sempre soube, tudo resultou em nada. Foi então que decidiu não crer que tal evento fosse possível.
UM QUASE ALÍVIO - parte 9 -
Nesse dia impossível, encontraria alguém que, como ele, descrê de tudo. E ele acreditaria, descrente que é e sabedor de que não se pode crer em nada. Então se alertaria para a impossibilidade de tal fato.
UM QUASE ALÍVIO - parte 10 -
Mataria, pois, ou daria fim a si mesmo. Não poderia conviver com o fato de acreditar que alguém acredita descrer de tudo, como ele. Alguém estaria mentindo, e sabendo que mentia, acreditaria em si e, nisso, não poderia acreditar.
UM QUASE ALÍVIO - parte 11 -
O celular apitou em seu bolso, tirando-o de todos os devaneios que alimentou desde que sentou ali, no banco sombreado da praça na qual descansava.
UM QUASE ALÍVIO - parte 12 -
Olhou para o aparelho, com a mensagem selecionada. Abriu, leu. Era quase o que pensara que seria.
UM QUASE ALÍVIO - parte 13 -
Esticou-se, e observou a praça. Reparou os pombos que ciscavam por ali, e lembrou que detestava pombos. Viu um mendigo falando sozinho e um policial barrigudo tentando acender um cigarro com fósforos. Achou graça da praça.
UM QUASE ALÍVIO - parte 14 – Final -
Com um isqueiro do qual não lembrava, acendeu o penúltimo cigarro. Triste, lamentou sinceramente ter ainda acreditado e partiu.
NADA ANESTESIA
Tudo dói, tudo marca, tudo é cicatriz. Ao nascer, somos recepcionados com um tapa e um corte abrupto na única conexão com o que sabemos instintivamente ser o conforto e aconchego total. Com um tapa e luz e barulho e frio e desorientação, somos recepcionados e imediatemente ensinados de que daqui pra frente tudo será barulhento, frio e desnorteante. Somos provavelmente o único mamífero a chorar por espancamento antes de procurar uma teta.
O umbigo é uma cicatriz e lembrete remoto e constante de que tudo começa em dor e de que a carne se modificará até que se desmanchará em falência física até anular a existência pensante que sustenta, por mais lúcida que esta seja. A saúde da carne e da existência que sustenta raramente coincidem. São ambas falhas e, no desencontro, algo dói.
O amor de mãe, por exemplo. Provavelmente é o único verdadeiro e totalmente entregue, sem restrições. Quase o mesmo vale para o pai presente e irmãos criados juntos. Cedo ou tarde, o ódio brotará e, mesmo que a lógica e a ponderação levem ao perdão e à conciliação, o ódio envenenará e impedirá a aceitação plena, ainda que o amor seja abundante e sincero. Cicatriz.
Pode-se perdoar, amar e conviver com pai e irmãos, ainda que as coisas não tenham sido totalmente resolvidas. E pode-se conviver com isso. Só da mãe se precisa absolvição. Justamente de quem não existe a necessidade de se obter qualquer coisa. Logo, ainda que tudo corra bem, alguém morrerá. E eis a dor.
Amigos com filhos dizem que o amor absoluto mora nos filhos que se têm. Mas filhos morrem, e testemunhei a dor absoluta de um pai que amou absolutamente a cria, que o amava absolutamente. Amor absoluto, dor absoluta.
Amigos. Mesmo que por décadas lhe façam bem, mais cedo ou mais tarde e apesar de toda a confiança e sinceridade, pisarão gravemente na bola. O que, num primeiro momento e caso seja uma grande e antiga e fraternal amizade, se pareça bastante com dor, logo se nota tratar-se de decepção e incredibilidade. Mas com isso pode-se conviver. Só lamenta-se. Cicatriz.
Algo que dói de fato e bastante é um tipo de relação que pode-se - com boa vontade e de maneira propositadamente simplória - definir como um tipo de amizade radical, intensa e instantânea. Mulheres.
Anos de experiência e reflexão caem por terra quando aquela garota – eu disse AQUELA garota – lhe diz, em meio às conversas então fascinantes e sexo então maravilhoso, as palavras que de uma maneira ou outra já foram pronunciadas antes mas que nunca soaram daquela forma e comporta-se da maneira com a qual sempre pensou ser adequada. Achas então que até que enfim, aconteceu. Aconteceu mesmo! Tudo será bonito e legal e maravilhoso. Então, cedo ou tarde, dor. Seja causador ou alvo, a dor se fará presente. Cicatriz. Mas em relação à isso, fazemos vistas grossas ao que passou até que ganhemos uma nova marca. Aí a comparamos com as antigas do mesmo tipo, e lamentamos o fato de que são todas muito parecidas, apesar das diferenças de tamanho e profundidade. Tsc, tsc, sussurramos, depois do porre. Não se aprende e, em meio a afirmações bastante lógicas e vaticinando regras pétreas, se ruma em direção a dor novamente, por mais ciente e experimentado e cuidadoso que seja o penitente.
Um grande amigo – em quem confio muito e do qual nada espero, apesar de com ele contar – costumava me dizer que o único amor sincero que conhecia era o amor abnegado que a cadela vira lata que cuidava de seu quintal lhe dedicava. Pois bem. A cadela morreu defendendo o quintal de uma jararaca, que a picou. Meu amigo sentiu dor sincera e sofrida. De novo, dor.
Cicatrizes aleatórias, marcas no corpo resultantes do sempre atrapalhado ato de se mover pelo mundo, não doem além do momento em que são infligidos. Esquecemos, até. De algumas, até gostamos, pela recordação gravada na carne de um dia excepcional.
Dentistas são apavorantes por não sabermos a extensão da dor que irá infligir, por não sabermos ou imaginarmos o que aquele desgraçado que parece um médico cheio de ferramentas metálicas fará com nossa voluntária e escancarada boca. Dentistas riem atrás de suas máscaras enquanto aceleram a rotação de furadeiras na nossa cara.
Ao contrário da tatuagem, por exemplo. Tatuar-se dói. E, dependendo da tatuagem e do lugar a ser tatuado, dói muito. Mas nos tatuamos, por possuir o completo controle da administração da dor. Sabe-se onde, como e por quanto tempo doerá. Pode-se interromper a qualquer momento. E, principalmente, SABE-SE o porquê de se dispor àquilo.
Gravarás algo que diz respeito, em última instância, apenas a ti e que querias gravado na pele e na carne, por tua vontade. Uma tatuagem é uma cicatriz desejada, planejada e executada. É a dor domada.
Viver dói, pois. Coisa muito bacana, mas dói. Reparando nas velhas cicatrizes e, quem sabe um dia, aprendendo com elas, é possível encarar dores indesejadas como se fossem cortes de arame farpado em dia de festa alucinada.
Toda essa dor é bacana, olhando com tranqüilidade. Pode-se evitar velhas dores. Se não for possível, é velha conhecida.
Qualquer coisa que se pareça oposta à dor, nela acabará. Mas não se deve rejeitá-las, pelo contrário. Viva tudo intensamente e quando a dor inevitável cobrar seu quinhão, sofra e aprenda com ela, se for nova. Do contrário, agarre-se nas lembranças de que já conviveu com ela e a transforme numa tatuagem, completamente domada e com hora para acabar.
POST SCRIPTUM
Obviamente, tenho consciência e discernimento das afirmações que fiz acima e que por vezes pareceram sugestões de como proceder (coisa que não tive e jamais terei a pretensão e mau gosto de fazer.) Só faço saber que, por mais que reafirme e acredite no que ali expus, eu, particularmente, não tenho conseguido aplicar tais vaticínios a mim mesmo. Mas ao menos me consola saber que ao menos tenho a pretensa noção dos erros que cometo e que de alguma maneira tenha ajudado o suposto leitor a tratar com mais tranqüilidade de qualquer situação que se assemelhe às expostas, e que tenhas se convencido a preparar-se ao que lhe reserva os dias vindouros. Por fim, recomendo o seguinte exercício: faça uma tatuagem, e que se foda o resto.
O umbigo é uma cicatriz e lembrete remoto e constante de que tudo começa em dor e de que a carne se modificará até que se desmanchará em falência física até anular a existência pensante que sustenta, por mais lúcida que esta seja. A saúde da carne e da existência que sustenta raramente coincidem. São ambas falhas e, no desencontro, algo dói.
O amor de mãe, por exemplo. Provavelmente é o único verdadeiro e totalmente entregue, sem restrições. Quase o mesmo vale para o pai presente e irmãos criados juntos. Cedo ou tarde, o ódio brotará e, mesmo que a lógica e a ponderação levem ao perdão e à conciliação, o ódio envenenará e impedirá a aceitação plena, ainda que o amor seja abundante e sincero. Cicatriz.
Pode-se perdoar, amar e conviver com pai e irmãos, ainda que as coisas não tenham sido totalmente resolvidas. E pode-se conviver com isso. Só da mãe se precisa absolvição. Justamente de quem não existe a necessidade de se obter qualquer coisa. Logo, ainda que tudo corra bem, alguém morrerá. E eis a dor.
Amigos com filhos dizem que o amor absoluto mora nos filhos que se têm. Mas filhos morrem, e testemunhei a dor absoluta de um pai que amou absolutamente a cria, que o amava absolutamente. Amor absoluto, dor absoluta.
Amigos. Mesmo que por décadas lhe façam bem, mais cedo ou mais tarde e apesar de toda a confiança e sinceridade, pisarão gravemente na bola. O que, num primeiro momento e caso seja uma grande e antiga e fraternal amizade, se pareça bastante com dor, logo se nota tratar-se de decepção e incredibilidade. Mas com isso pode-se conviver. Só lamenta-se. Cicatriz.
Algo que dói de fato e bastante é um tipo de relação que pode-se - com boa vontade e de maneira propositadamente simplória - definir como um tipo de amizade radical, intensa e instantânea. Mulheres.
Anos de experiência e reflexão caem por terra quando aquela garota – eu disse AQUELA garota – lhe diz, em meio às conversas então fascinantes e sexo então maravilhoso, as palavras que de uma maneira ou outra já foram pronunciadas antes mas que nunca soaram daquela forma e comporta-se da maneira com a qual sempre pensou ser adequada. Achas então que até que enfim, aconteceu. Aconteceu mesmo! Tudo será bonito e legal e maravilhoso. Então, cedo ou tarde, dor. Seja causador ou alvo, a dor se fará presente. Cicatriz. Mas em relação à isso, fazemos vistas grossas ao que passou até que ganhemos uma nova marca. Aí a comparamos com as antigas do mesmo tipo, e lamentamos o fato de que são todas muito parecidas, apesar das diferenças de tamanho e profundidade. Tsc, tsc, sussurramos, depois do porre. Não se aprende e, em meio a afirmações bastante lógicas e vaticinando regras pétreas, se ruma em direção a dor novamente, por mais ciente e experimentado e cuidadoso que seja o penitente.
Um grande amigo – em quem confio muito e do qual nada espero, apesar de com ele contar – costumava me dizer que o único amor sincero que conhecia era o amor abnegado que a cadela vira lata que cuidava de seu quintal lhe dedicava. Pois bem. A cadela morreu defendendo o quintal de uma jararaca, que a picou. Meu amigo sentiu dor sincera e sofrida. De novo, dor.
Cicatrizes aleatórias, marcas no corpo resultantes do sempre atrapalhado ato de se mover pelo mundo, não doem além do momento em que são infligidos. Esquecemos, até. De algumas, até gostamos, pela recordação gravada na carne de um dia excepcional.
Dentistas são apavorantes por não sabermos a extensão da dor que irá infligir, por não sabermos ou imaginarmos o que aquele desgraçado que parece um médico cheio de ferramentas metálicas fará com nossa voluntária e escancarada boca. Dentistas riem atrás de suas máscaras enquanto aceleram a rotação de furadeiras na nossa cara.
Ao contrário da tatuagem, por exemplo. Tatuar-se dói. E, dependendo da tatuagem e do lugar a ser tatuado, dói muito. Mas nos tatuamos, por possuir o completo controle da administração da dor. Sabe-se onde, como e por quanto tempo doerá. Pode-se interromper a qualquer momento. E, principalmente, SABE-SE o porquê de se dispor àquilo.
Gravarás algo que diz respeito, em última instância, apenas a ti e que querias gravado na pele e na carne, por tua vontade. Uma tatuagem é uma cicatriz desejada, planejada e executada. É a dor domada.
Viver dói, pois. Coisa muito bacana, mas dói. Reparando nas velhas cicatrizes e, quem sabe um dia, aprendendo com elas, é possível encarar dores indesejadas como se fossem cortes de arame farpado em dia de festa alucinada.
Toda essa dor é bacana, olhando com tranqüilidade. Pode-se evitar velhas dores. Se não for possível, é velha conhecida.
Qualquer coisa que se pareça oposta à dor, nela acabará. Mas não se deve rejeitá-las, pelo contrário. Viva tudo intensamente e quando a dor inevitável cobrar seu quinhão, sofra e aprenda com ela, se for nova. Do contrário, agarre-se nas lembranças de que já conviveu com ela e a transforme numa tatuagem, completamente domada e com hora para acabar.
POST SCRIPTUM
Obviamente, tenho consciência e discernimento das afirmações que fiz acima e que por vezes pareceram sugestões de como proceder (coisa que não tive e jamais terei a pretensão e mau gosto de fazer.) Só faço saber que, por mais que reafirme e acredite no que ali expus, eu, particularmente, não tenho conseguido aplicar tais vaticínios a mim mesmo. Mas ao menos me consola saber que ao menos tenho a pretensa noção dos erros que cometo e que de alguma maneira tenha ajudado o suposto leitor a tratar com mais tranqüilidade de qualquer situação que se assemelhe às expostas, e que tenhas se convencido a preparar-se ao que lhe reserva os dias vindouros. Por fim, recomendo o seguinte exercício: faça uma tatuagem, e que se foda o resto.
UM PLANO
UM PLANO parte 1 -
Apesar do desconforto que, ele acreditava plenamente que seu plano daria certo. O desconforto era mais ou menos o mesmo que sentiu em seu primeiro dia de aula, ou como quando apresentou um projeto científico pela primeira vez.
UM PLANO parte 2 -
O levava a crer toda a literatura dirigida que consumiu até ali, as provas amplamente divulgadas nas mais diversas mídias e suas próprias conclusões empíricas. Deu início aos últimos preparativos.
UM PLANO parte 3 -
Posicionou junto à fonte o artefato cuidadosamente preparado. O balde - com água, os mais variados insetos que pôde coletar em seu quintal na última semana e pilhas e baterias de todo e qualquer aparelho eletrônico ao alcance de sua mão naquele dia – seria a base do tão aguardado processo gerador pelo qual ansiava.
UM PLANO parte 4 -
Desde que ele fosse o elemento condutor entre o balde e a fonte transformadora quando tudo fosse conectado, não havia dúvida. Daria certo.
UM PLANO parte 5 -
Tomou então todos os comprimidos e xaropes que conseguiu coletar na casa e pintou-se com aquela tinta plástica cujo galão pela metade estava convenientemente esquecido na garagem e preparou-se para o grande momento.
UM PLANO parte 6 -
Imediatamente ao lado de onde até então se guardava a tal tinta ficava a chave geral que abastecia toda aquela estrutura. Desligou-a, e correu para seu posto.
UM PLANO parte 7 -
Enfiou os pés descalços no balde, e, sabedor da provável demora até o procedimento tivesse início, relaxou. Ignorando as picadas dos insetos que insistiam em sobreviver e o forte cheiro da tinta plástica, revisou seu plano e novamente convenceu-se de que tudo daria certo. Afinal, dera certo anteriormente, e em circunstâncias bem mais favoráveis. Ele leu. Ele viu. Dará certo.
UM PLANO parte 8 -
Ouviu seu nome sendo gritado pela casa. Posicionou o instrumento metálico na fonte, e segurou firme. Tremendo de expectativa e ansiedade perante a iminência da realização de seu demorado, zeloso e minucioso plano, pensou: “Vai ser legal. Vai dar certo, e então voarei. Andarei pelas paredes, e no teto. Ou farei qualquer outra coisa espetacular. Quero só ver a cara da mamãe!”.
UM PLANO parte 9 -
Naquele escuro que já lhe era familiar ouviu de novo seu nome, acompanhado de ameaças. Ouviu o som de um clique e viu o clarão e viu o fogo. Depois tudo ficou escuro de novo, mas disso ele não tomou conhecimento.
UM PLANO parte 10 -
A babá que supostamente cuidava do garoto naquela noite não conseguiu explicar como um menino de oito anos movimentou-se pela casa tantos artefatos e tão tarde da noite sem que ela observa-se algo de estranho ou que desse falta do infante. Alega que preparava o jantar no momento em que a luz faltou, quando chamou pelo mesmo e foi à garagem para verificar a eletricidade, onde a religou.
UM PLANO parte 11 -
Acharam-no agarrado a um garfo, conectado a uma tomada elétrica. Estava coberto em tinta plástica azul, que se inflamou. Jazia junto a um balde cheio de insetos e pilhas. Vestia uma cueca sobre o pijama e um lençol amarrado ao pescoço. Deixou bilhete aos pais, na qual pedia que guardassem seus gibis, pois partia em missão e da qual voltaria “senhor de grandes poderes! Vocês vão ver só!”.
UM PLANO parte 12 -
O corpo foi severamente deformado. Ainda assim, a autópsia revelou a presença de medicação restrita no sangue. O processo todo foi muito confuso, e nada ficou provado. Os pais desapareceram alguns anos depois e, de acordo com relatos desencontrados, a babá tornou-se leitora da sorte e médium itinerante.
UM PLANO parte 13 -
Por uma notável coincidência, naquela mesma noite e minutos depois do incidente aqui relatado, dois terços do País mergulharam em um apagão energético que duraria meses e afetaria gravemente a economia nacional. Muitos atribuíram tal pane ao feito de Júlio, e ainda hoje se comenta tal fato.
UM PLANO parte 14: Final -
Mesmo agora, depois de décadas, crianças, adolescentes e mesmo adultos daquela região afirmam ouvir de vez em quando a voz de Júlio afirmando coisas do tipo:
“Prestem atenção. Deu certo. Sou invisível, intangível e imortal. E é uma merda.”
Apesar do desconforto que, ele acreditava plenamente que seu plano daria certo. O desconforto era mais ou menos o mesmo que sentiu em seu primeiro dia de aula, ou como quando apresentou um projeto científico pela primeira vez.
UM PLANO parte 2 -
O levava a crer toda a literatura dirigida que consumiu até ali, as provas amplamente divulgadas nas mais diversas mídias e suas próprias conclusões empíricas. Deu início aos últimos preparativos.
UM PLANO parte 3 -
Posicionou junto à fonte o artefato cuidadosamente preparado. O balde - com água, os mais variados insetos que pôde coletar em seu quintal na última semana e pilhas e baterias de todo e qualquer aparelho eletrônico ao alcance de sua mão naquele dia – seria a base do tão aguardado processo gerador pelo qual ansiava.
UM PLANO parte 4 -
Desde que ele fosse o elemento condutor entre o balde e a fonte transformadora quando tudo fosse conectado, não havia dúvida. Daria certo.
UM PLANO parte 5 -
Tomou então todos os comprimidos e xaropes que conseguiu coletar na casa e pintou-se com aquela tinta plástica cujo galão pela metade estava convenientemente esquecido na garagem e preparou-se para o grande momento.
UM PLANO parte 6 -
Imediatamente ao lado de onde até então se guardava a tal tinta ficava a chave geral que abastecia toda aquela estrutura. Desligou-a, e correu para seu posto.
UM PLANO parte 7 -
Enfiou os pés descalços no balde, e, sabedor da provável demora até o procedimento tivesse início, relaxou. Ignorando as picadas dos insetos que insistiam em sobreviver e o forte cheiro da tinta plástica, revisou seu plano e novamente convenceu-se de que tudo daria certo. Afinal, dera certo anteriormente, e em circunstâncias bem mais favoráveis. Ele leu. Ele viu. Dará certo.
UM PLANO parte 8 -
Ouviu seu nome sendo gritado pela casa. Posicionou o instrumento metálico na fonte, e segurou firme. Tremendo de expectativa e ansiedade perante a iminência da realização de seu demorado, zeloso e minucioso plano, pensou: “Vai ser legal. Vai dar certo, e então voarei. Andarei pelas paredes, e no teto. Ou farei qualquer outra coisa espetacular. Quero só ver a cara da mamãe!”.
UM PLANO parte 9 -
Naquele escuro que já lhe era familiar ouviu de novo seu nome, acompanhado de ameaças. Ouviu o som de um clique e viu o clarão e viu o fogo. Depois tudo ficou escuro de novo, mas disso ele não tomou conhecimento.
UM PLANO parte 10 -
A babá que supostamente cuidava do garoto naquela noite não conseguiu explicar como um menino de oito anos movimentou-se pela casa tantos artefatos e tão tarde da noite sem que ela observa-se algo de estranho ou que desse falta do infante. Alega que preparava o jantar no momento em que a luz faltou, quando chamou pelo mesmo e foi à garagem para verificar a eletricidade, onde a religou.
UM PLANO parte 11 -
Acharam-no agarrado a um garfo, conectado a uma tomada elétrica. Estava coberto em tinta plástica azul, que se inflamou. Jazia junto a um balde cheio de insetos e pilhas. Vestia uma cueca sobre o pijama e um lençol amarrado ao pescoço. Deixou bilhete aos pais, na qual pedia que guardassem seus gibis, pois partia em missão e da qual voltaria “senhor de grandes poderes! Vocês vão ver só!”.
UM PLANO parte 12 -
O corpo foi severamente deformado. Ainda assim, a autópsia revelou a presença de medicação restrita no sangue. O processo todo foi muito confuso, e nada ficou provado. Os pais desapareceram alguns anos depois e, de acordo com relatos desencontrados, a babá tornou-se leitora da sorte e médium itinerante.
UM PLANO parte 13 -
Por uma notável coincidência, naquela mesma noite e minutos depois do incidente aqui relatado, dois terços do País mergulharam em um apagão energético que duraria meses e afetaria gravemente a economia nacional. Muitos atribuíram tal pane ao feito de Júlio, e ainda hoje se comenta tal fato.
UM PLANO parte 14: Final -
Mesmo agora, depois de décadas, crianças, adolescentes e mesmo adultos daquela região afirmam ouvir de vez em quando a voz de Júlio afirmando coisas do tipo:
“Prestem atenção. Deu certo. Sou invisível, intangível e imortal. E é uma merda.”
O FIM
O FIM - Parte 1: Aquele parecia ser um ótimo ano. O pão era farto e os jogos foram, enfim, abolidos. Era um verão quente e uma boa brisa suave tornava os dias e as noites extremamente agradáveis. Mas o inverno antecipou-se e, inclemente, açoitou a carne dos que ali viviam e congelou os campos. O pão acabou. A vontade esvaiu-se.
Parte 2: Os jogos voltaram, já que o povo precisava de calor e vida, ainda que isso significa-se o sangue escorrendo escorrendo na lama fria e suja. Decidiu-se que, agora, e pelo bem de todos, só se sairia da arena de duas maneiras: vencendo, e portanto merecedor de uma morte rápida; e perdendo, portando ...sangran...do lentamente sobre a sujeira fétida até que o coração congele e a morte lhe conforte.
Parte 3: Nas arquibancadas, não se ouvia mais o som de fanfarras e torcidas. Apenas o peso do constrangedor e conformado silêncio sadomasoquista. Pois todos ali sabiam que chegaria a sua vez de adentrar a arena, onde tudo acabará inexoravelmente em dor, sangue e barro.
Parte 4 - No fim, em meio à lama que o inverno sem fim esdureceu, as caveiras que ainda estavam na superfíe sorriam umas para as outras e para as estrelas indiferentes. Então as paredes da arena desabaram. Tudo ficou escuro e o silêncio não era mais constrangedor, mas apenas silêncio.
Parte 2: Os jogos voltaram, já que o povo precisava de calor e vida, ainda que isso significa-se o sangue escorrendo escorrendo na lama fria e suja. Decidiu-se que, agora, e pelo bem de todos, só se sairia da arena de duas maneiras: vencendo, e portanto merecedor de uma morte rápida; e perdendo, portando ...sangran...do lentamente sobre a sujeira fétida até que o coração congele e a morte lhe conforte.
Parte 3: Nas arquibancadas, não se ouvia mais o som de fanfarras e torcidas. Apenas o peso do constrangedor e conformado silêncio sadomasoquista. Pois todos ali sabiam que chegaria a sua vez de adentrar a arena, onde tudo acabará inexoravelmente em dor, sangue e barro.
Parte 4 - No fim, em meio à lama que o inverno sem fim esdureceu, as caveiras que ainda estavam na superfíe sorriam umas para as outras e para as estrelas indiferentes. Então as paredes da arena desabaram. Tudo ficou escuro e o silêncio não era mais constrangedor, mas apenas silêncio.
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