sexta-feira, 19 de março de 2010

NADA ANESTESIA

Tudo dói, tudo marca, tudo é cicatriz. Ao nascer, somos recepcionados com um tapa e um corte abrupto na única conexão com o que sabemos instintivamente ser o conforto e aconchego total. Com um tapa e luz e barulho e frio e desorientação, somos recepcionados e imediatemente ensinados de que daqui pra frente tudo será barulhento, frio e desnorteante. Somos provavelmente o único mamífero a chorar por espancamento antes de procurar uma teta.

O umbigo é uma cicatriz e lembrete remoto e constante de que tudo começa em dor e de que a carne se modificará até que se desmanchará em falência física até anular a existência pensante que sustenta, por mais lúcida que esta seja. A saúde da carne e da existência que sustenta raramente coincidem. São ambas falhas e, no desencontro, algo dói.

O amor de mãe, por exemplo. Provavelmente é o único verdadeiro e totalmente entregue, sem restrições. Quase o mesmo vale para o pai presente e irmãos criados juntos. Cedo ou tarde, o ódio brotará e, mesmo que a lógica e a ponderação levem ao perdão e à conciliação, o ódio envenenará e impedirá a aceitação plena, ainda que o amor seja abundante e sincero. Cicatriz.

Pode-se perdoar, amar e conviver com pai e irmãos, ainda que as coisas não tenham sido totalmente resolvidas. E pode-se conviver com isso. Só da mãe se precisa absolvição. Justamente de quem não existe a necessidade de se obter qualquer coisa. Logo, ainda que tudo corra bem, alguém morrerá. E eis a dor.

Amigos com filhos dizem que o amor absoluto mora nos filhos que se têm. Mas filhos morrem, e testemunhei a dor absoluta de um pai que amou absolutamente a cria, que o amava absolutamente. Amor absoluto, dor absoluta.

Amigos. Mesmo que por décadas lhe façam bem, mais cedo ou mais tarde e apesar de toda a confiança e sinceridade, pisarão gravemente na bola. O que, num primeiro momento e caso seja uma grande e antiga e fraternal amizade, se pareça bastante com dor, logo se nota tratar-se de decepção e incredibilidade. Mas com isso pode-se conviver. Só lamenta-se. Cicatriz.

Algo que dói de fato e bastante é um tipo de relação que pode-se - com boa vontade e de maneira propositadamente simplória - definir como um tipo de amizade radical, intensa e instantânea. Mulheres.

Anos de experiência e reflexão caem por terra quando aquela garota – eu disse AQUELA garota – lhe diz, em meio às conversas então fascinantes e sexo então maravilhoso, as palavras que de uma maneira ou outra já foram pronunciadas antes mas que nunca soaram daquela forma e comporta-se da maneira com a qual sempre pensou ser adequada. Achas então que até que enfim, aconteceu. Aconteceu mesmo! Tudo será bonito e legal e maravilhoso. Então, cedo ou tarde, dor. Seja causador ou alvo, a dor se fará presente. Cicatriz. Mas em relação à isso, fazemos vistas grossas ao que passou até que ganhemos uma nova marca. Aí a comparamos com as antigas do mesmo tipo, e lamentamos o fato de que são todas muito parecidas, apesar das diferenças de tamanho e profundidade. Tsc, tsc, sussurramos, depois do porre. Não se aprende e, em meio a afirmações bastante lógicas e vaticinando regras pétreas, se ruma em direção a dor novamente, por mais ciente e experimentado e cuidadoso que seja o penitente.

Um grande amigo – em quem confio muito e do qual nada espero, apesar de com ele contar – costumava me dizer que o único amor sincero que conhecia era o amor abnegado que a cadela vira lata que cuidava de seu quintal lhe dedicava. Pois bem. A cadela morreu defendendo o quintal de uma jararaca, que a picou. Meu amigo sentiu dor sincera e sofrida. De novo, dor.

Cicatrizes aleatórias, marcas no corpo resultantes do sempre atrapalhado ato de se mover pelo mundo, não doem além do momento em que são infligidos. Esquecemos, até. De algumas, até gostamos, pela recordação gravada na carne de um dia excepcional.

Dentistas são apavorantes por não sabermos a extensão da dor que irá infligir, por não sabermos ou imaginarmos o que aquele desgraçado que parece um médico cheio de ferramentas metálicas fará com nossa voluntária e escancarada boca. Dentistas riem atrás de suas máscaras enquanto aceleram a rotação de furadeiras na nossa cara.

Ao contrário da tatuagem, por exemplo. Tatuar-se dói. E, dependendo da tatuagem e do lugar a ser tatuado, dói muito. Mas nos tatuamos, por possuir o completo controle da administração da dor. Sabe-se onde, como e por quanto tempo doerá. Pode-se interromper a qualquer momento. E, principalmente, SABE-SE o porquê de se dispor àquilo.
Gravarás algo que diz respeito, em última instância, apenas a ti e que querias gravado na pele e na carne, por tua vontade. Uma tatuagem é uma cicatriz desejada, planejada e executada. É a dor domada.

Viver dói, pois. Coisa muito bacana, mas dói. Reparando nas velhas cicatrizes e, quem sabe um dia, aprendendo com elas, é possível encarar dores indesejadas como se fossem cortes de arame farpado em dia de festa alucinada.
Toda essa dor é bacana, olhando com tranqüilidade. Pode-se evitar velhas dores. Se não for possível, é velha conhecida.

Qualquer coisa que se pareça oposta à dor, nela acabará. Mas não se deve rejeitá-las, pelo contrário. Viva tudo intensamente e quando a dor inevitável cobrar seu quinhão, sofra e aprenda com ela, se for nova. Do contrário, agarre-se nas lembranças de que já conviveu com ela e a transforme numa tatuagem, completamente domada e com hora para acabar.

POST SCRIPTUM
Obviamente, tenho consciência e discernimento das afirmações que fiz acima e que por vezes pareceram sugestões de como proceder (coisa que não tive e jamais terei a pretensão e mau gosto de fazer.) Só faço saber que, por mais que reafirme e acredite no que ali expus, eu, particularmente, não tenho conseguido aplicar tais vaticínios a mim mesmo. Mas ao menos me consola saber que ao menos tenho a pretensa noção dos erros que cometo e que de alguma maneira tenha ajudado o suposto leitor a tratar com mais tranqüilidade de qualquer situação que se assemelhe às expostas, e que tenhas se convencido a preparar-se ao que lhe reserva os dias vindouros. Por fim, recomendo o seguinte exercício: faça uma tatuagem, e que se foda o resto.

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